Uma
história é sempre o meio: não há como ser início nem final. É
certo que toda história tem seu começo e seu término, mas não
passa disso: é o seu, não o de um todo.
Tomo
por exemplo Mrs Dalloway, espécime perfeita para uma analogia. O
romance se dá início com a decisão de comprar flores numa manhã
quente de julho e termina na noite do mesmo dia. Mrs Dalloway tem ai
seu começo e seu final, mas é o meio de uma história tão maior,
uma história apenas percebida – nunca contada. Há o dia em que
Dalloway decidiu fazer uma festa, há o momento em que Peter Walsh
voltou da Índia, haverá um enterro, por certo, que nunca nos será
mostrado; não por Woolf. Talvez por nós mesmos, se o quisermos. E
qual leitor, por mais atento, por mais Cândido que seja, saberá
daquele beijo proibido num navio e da moça que o sofreu? Porque tal
beijo é parte de outro meio – outra história que por acaso nos
foi contada¹.
Literatura,
assim vista, não constituída de inícios e fins mas de meios
contínuos, se mostra irmã da realidade; talvez a arte menos arte de
todas, por querer ser crua e cruel como a própria vida. E como na
vida, sabe-se tão pouco de tanta coisa e de tanta gente que nos
resta preencher lacunas com interpretações. Afinal, não dispomos
da visão do todo, nunca; seja em vida ou em literatura.
Nem
mesmo Joyce e Sabino, entre retratos e encontros, narrando começos
ou finais, saberiam o paradeiro de todos os seus filhos imateriais.
Um deles, muitos deles se perdem no meio em que estavam e vão
criando seus começos. Literatura se torna viva desse jeito.
Personagens se tocam e se repelem, e o bom leitor sabe que a boa
história pesa porque é densa demais para suas próprias páginas.
Beira a maldade – dão-nos só o Cristo, enquanto nos
escondem Gênesis e Apocalipse. Contam-nos o meio, apenas; porque é
só o que se tem para contar. Volto a Sabino, ainda que parcamente
modificado: de tudo ficam três coisas: a certeza de que se está
sempre começando, a certeza de que é preciso continuar e a certeza
de que será interrompida antes de terminar.
Talvez
por isso reneguemos o era uma vez
ao passado. Hoje: era uma dentre tantas vezes.