sexta-feira, 29 de junho de 2012

O Último dos Suicidas


Há uma estranha melancolia pairando no mundo. E o mundo cada vez mais vazio. Cada vez maior. Ontem minha mãe se foi, afogada. Antes dela, meu irmão. Meu pai dirige o carro nesse momento, chorando calado. Só há árvores lá fora passando como um só borrão verde. O carro vai rápido; o vírus vai mais rápido ainda.
A contaminação começou há dois meses em algum lugar na Suíça. Hoje não há mais ninguém lá. A Europa, de um modo geral, já não mais é. Oceania já não mais é. Ásia, África, América. Todos morremos pacificamente, porque não podemos lutar contra nossa própria vontade.

O ar cheira a desejo de morte. Para os contaminados, todo objeto é tentador. Toda dor é glória e se vai feliz. Isso é para mim o mais estranho nessa doença desconhecida: não há tristeza nem choro, só impulso. Por isso sei que dela ainda não sofro. Minha tristeza em ver o homem definhar é natural, e ainda choro. Meu pai dirige o carro, mas parou de chorar há cerca de uma hora. Mantém o olho fixo na estrada. Quase não pisca.

Acho que sou imune. Só isso explicaria a capacidade de permanecer em tão demorado contato com pessoas infectadas e não compartilhar do mesmo comportamento doentio. Na verdade, há duas semanas que presenciei o primeiro caso da doença. Desde então tenho visto toda sorte de manifestações. Tudo, no entanto, pareceu real quando meu irmão quebrou o espelho e tingiu o banheiro de sangue.

Meu pai parou o carro há quinze minutos. Não largou o volante, não me olhou. Somos dois, mas apenas eu estou aqui. Minha mãe resistiu a morte de meu irmão como uma guerreira, mas é disso que o virus se alimenta. Coragem, vontade. Talvez me falte naturalmente tais coisas, por isso sobrevivo.

Estou sozinho. Meu pai está no meio da pista molhada, em frente ao nosso carro, esperando que ele venha em sua direção. Cinco, dez minutos. A pouca consciência que ainda resta o alerta de que o fim não chegará por aquele meio. Saio andando em busca de sua fatalidade particular.

Eu saio do carro. Sinto que sou o último homem farfalhando na Terra. Sei que estou na mesma posição há vários minutos. Parado ao lado da porta aberta. Há um cansaço que pesa, que não me permite mover.

Não estou infectado por esse vírus. Não por esse. Parece que andei por quilômetros, ou simplesmente apareci no meio desta ponte. O vento é tão forte quanto eu. Quem dera eu sentisse a água uma última vez. Mas será tarde quando eu atingi-la. 

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Encontro

O que será que Ruth tanto olha? Ela é cega, afinal. Não vê nada. Mas seus olhos parecem fixos num ponto específico. Uma vez ouvi uma doutora explicar em sua tese o ponto vélico. Ruth talvez veja o ponto vélico que eu nunca vi. Bem que gostaria. Só há a fumaça do ônibus a frente, o espirro da moça gripada, as gotas de chuva na janela. 

Ruth não vê essas coisas. Ruth não anda de ônibus porque tem medo. Medo da fumaça, da gripe, da chuva. Já eu tenho medo do ponto. O vélico, de Ruth, que não enxergo; o ponto em que desço, o do ônibus, que também não enxergo. Mas estou próximo, e em breve deixarei de ser cego: verei aquele que nunca vi.