Há quase uma semana que rola polêmica sobre um livro didático do Português recentemente aprovado pelo MEC. O mais interessante é que os responsáveis por essa balbúrdia toda são, em sua maioria, aqueles que se julgam os 'transmissores de informação' no País. Eles mesmos, os jornalistas.
O problema está em como essa informação é passada para o povo brasileiro e, ainda pior, como alguns formadores de opinião se erguem revoltados contra áreas e estudos que passam longe de suas especialidades. Ver Alexandre Garcia, jornalista inteligentíssimo, comentando sobre o livro didático "Por uma vida melhor" em plena rede nacional me deu medo. Primeiro porque Garcia é muito respeitado e sua opinião é [ou parece ser] muito bem recebida pela população. Segundo, e mais grave, porque ele discorre sobre algo que NÃO pode ser discorrido por um leigo sem que tenha por consequência final um monte de conceitos distorcidos e mal interpretados. O mínimo que uma emissora de TV, ou Rádio, ou um jornal impresso deveria fazer nesses momentos é pôr no ar um especialista [ou ainda melhor, VÁRIOS] que estivessem habilitados a falar sobre o assunto. Alexandre Garcia comentando Linguística é tão válido quanto eu [estudante de Letras] comentando sobre Economia ou alguma ação judicial.
Mas há quem tenha feito coisa pior, dessa vez na Rádio CBN. O texto a seguir, que eu transcrevo por completo, foi enviado como uma carta à direção da referida rádio pelo Professor Antonio Carlos Xavier, professor titular de Linguística na Universidade Federal de Pernambuco, onde eu estudo. A carta é direta, concisa e muito, muito esclarecedora para quem nunca pegou um livro de Linguística, mas quer entender as motivações de toda essa polêmica. E de quebra, é engraçada em alguns momentos. Quer melhor?
E mais: para quem quiser ler a opinião de Marcos Bagno, linguista conhecido e estudado na maioria das universidades do País, é só ir em seu site pessoal www.marcosbagno.com.br e procurar o artigo "Polêmica ou ignorância?".
Segue agora a carta do Professor Xavier:
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E mais: para quem quiser ler a opinião de Marcos Bagno, linguista conhecido e estudado na maioria das universidades do País, é só ir em seu site pessoal www.marcosbagno.com.br e procurar o artigo "Polêmica ou ignorância?".
Segue agora a carta do Professor Xavier:
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À direção de jornalismo da Rádio CBN
Venho manifestar minha indignação com esta emissora após ouvir observações estapafúrdias do comentarista de política, Senhor Merval Pereira, bem intencionado, porém cientificamente desatualizado, em relação aos mais recentes estudos realizados no campo da Ciência da Linguagem.
Os comentários disparatados proferidos pelo jornalista aconteceram durante a emissão do dia, 13/05/2011, dentro do programa “CBN Brasil”, ancorado pelo jornalista Carlos Alberto Sardenberg. O comentário abordou supostos erros conceituais presentes no livro didático de Língua Portuguesa, “Por uma vida melhor” da coleção “Viver, aprender” aprovado pelo MEC depois de avaliado por uma equipe de especialistas. O comentário pode ser ouvindo na íntegra acessando o link http://cbn.globoradio.globo.com/comentaristas/merval-pereira/MERVAL-PEREIRA.htm e clicando no podcast intitulado “Livro didático não pode aceitar erro de Português”.
Solicitado pelo apresentador a comentar trechos do referido livro no qual aparecem afirmações tratadas por ambos como “polêmicas”, o comentarista declinou uma série de opiniões equivocadas e descabidas sobre
Solicitado pelo apresentador a comentar trechos do referido livro no qual aparecem afirmações tratadas por ambos como “polêmicas”, o comentarista declinou uma série de opiniões equivocadas e descabidas sobre
tais trechos. Adjetivos como “absurdo”, “ilógico”, “distorcido”... permearam largamente a fala do jornalista sobre a posição dos linguistas, CIENTISTAS QUE SE DEDICAM A ESTUDAR O FUNCIONAMENTO DA LINGUAGEM E A DESCREVÊ-LA tal como ela é e não como ela deveria ser.
Durante e depois do comentário, fiquei me perguntando: com que autoridade científica este comentarista de política se arvora a tecer comentários avaliativos sobre questões de linguagem para as quais nitidamente não tem formação acadêmica? O que ele denomina de “erro gramatical’ não passa do que, nós linguistas, cientificamente denominamos de variação no uso da linguagem, de acordo com o contexto situacional. Dizer: “Nós pega o peixe” ou “Os menino pega o peixe” são exemplos de variação na forma de usar a linguagem, tal como apontado corretamente pelo livro.
O comentarista confunde “falares regionais” com modo informal de utilizar a língua. E o que é pior, na
sequência, ele afirma que só em algumas regiões é que se fala “errado” (“o fato de falarem errado em certas regiões não quer dizer que seja o português correto”). Certamente a região onde ele vive não se fala “errado” e muito menos ele falaria fora do “Português padrão. Não é bem isso o que uma análise superficial dos seus comentários nos permite ver.
Segundo o senhor Merval, “livro didático não pode ensinar errado”. Esse senhor precisa ser avisado de que não se trata de “ensinar errado”. Trata-se de reproduzir, em lugares adequados para isso, como em livros didáticos por exemplo, as descobertas científicas de anos e anos de pesquisas, tendo como objeto de investigação diferentes línguas como inglês, francês, espanhol, alemão e também português. Pesquisadores sérios passam horas, meses e anos de suas vidas coletando dados, cotejando-os, analisando-os, guiados por metodologias e teorias rigorosas para realizarem suas pesquisas. Os resultados de todo esse trabalho não são meras impressões superficiais como as opiniões deste “ingênuo” comentarista que é mais um refém das concepções de ‘língua’, ‘erro’ e ‘gramática’ disseminadas em manuais de português escritos por pessoas desatualizadas sobre os novos achados da Ciência da linguagem.
Outro trecho do livro lido pelo apresentador do programa para ser objeto das observações do comentarista
referia-se à possibilidade de alguém ser vítima de ‘preconceito linguístico’ se optar por falar “os livro” em lugar de “os livros”, forma padrão esperada. O “senhor sabe tudo” comete o impropério de dizer que tal afirmação daquele livro didático seria “um absurdo total”. Entretanto, ele mesmo comete uma série de “erros de português” em seu desnecessário comentário. Coloco essa expressão entre aspas para acentuar que, cientificamente não há “erros” no uso da língua, o que pode haver é inadequação linguística, ao se usar uma variação da língua fora do contexto adequado ou esperado.
Vejamos algumas das inadequações linguísticas cometidas por ele em seu lamentável comentário num dos mais importantes veículos de comunicação, o rádio, cuja maior parte da audiência desta emissora em particular, A CBN, é formada por ouvintes bastante escolarizados, muitos com nível de mestrado e doutorado, a exemplo da grande parcela dos linguistas deste país. Certamente, alguns ouvintes devem ter
se incomodado bastante ao escutar tais inadequações, neste contexto de comunicação em que deveria predominar o uso formal da Língua Portuguesa. Vejamos alguns dos seus “deslizes de linguagem”:
a) “imagina” - A forma verbal adequada deveria ser “imagine” (você), ou seja, o comentarista deveria ter
usado a 3ª. pessoa do singular no modo imperativo, pois dirigia-se ao apresentador com quem estava dialogando no ar. A forma verbal ‘imagina’ é relativa à 2ª. pessoa do singular (tu) do modo imperativo;
b) “você falá” – Há a omissão do ‘r’ final neste e em vários outros verbos e locuções verbais (aceitá, pode sê, vai fazê, estudá, transformá, justificá, querê, politizá etc.) que permeiam o comentário. Usando o mesmo rigor do comentarista purista, tal omissão constituiria uma inadequação de pronúncia do verbo, “ato falho” também classificado por muitos gramatiqueiros de “vício de linguagem”. Imagina você,leitor, como agora ficará a imagem deste jornalista depois de empregaR tantos verbos sem ‘r’. Seus ouvintes não vão lhe perdoaR.
c) “né? – A contração do advérbio ‘não’ com o verbo ‘ser’ empregado na 3ª. pessoa do singular, ‘é’, aparece com frequência no texto oral do jornalista. Se ele tivesse sido mais cuidadoso com a própria linguagem teria preferido a forma ‘não é ?’ e assim tiraria a naturalidade da fala própria do veículo rádio.
d) “ele tem mérito por outras coisa” – Na mesma linha do “esquecimento da língua padrão”, o jornalista
esqueceu de fazer a concordância nominal no ar para todo o Brasil. Faltou-lhe inserir a letra ‘s’ na palavra ‘coisa’. Será que ele não percebeu que estava falando potencialmente para milhões brasileiros que ouviam a emissora naquele momento? Ou ele teria pensado que estava à mesa de um bar, verborragindo a seus
amigos de imprensa para lhes parecer um intelectual, capaz de discorrer fluentemente sobre qualquer tema, até mesmo sobre aqueles para os quais jamais leu uma tese, nunca pegou em uma dissertação ou sequer folheou um artigo científico desta área de conhecimento, a Linguística?
e) “ele (Lula) em nenhum momento nunca, embora tenha resvalado”– Neste trecho aparecem duas inadequações linguísticas das quais o comentarista não se deu conta. Uma é o uso da dupla negativa (‘nenhum’ e ‘nunca’) que constituiria uma quebra da lógica no raciocínio cartesiano que o jornalista tanto advoga. Sabe-se que duas partículas ou palavras negativas numa mesma sentença tornam-na afirmativa. A
segunda inadequação é a construção de uma frase com ‘anacoluto’, isto é, um fenômeno linguístico bastante comum na modalidade falada da língua, caracterizado pelo abandono de uma estrutura frasal com o imediato início de outra frase. Tal procedimento pode deixar o ouvinte atordoado. Será que o “sábio jornalista”, profundo conhecedor da Língua Portuguesa e das formas de raciocínio lógico, esqueceu-se destes detalhes?
f) “ele tem esse viés, tem essa mania” – A sequência das palavras ‘viés’ e ‘mania’ com o intuito de encadear
uma sinonímia, ou seja, que ambas as palavras apresentem sentido similar é mais uma mostra de que o “perfeccionista observador” de supostos “erros” alheios também comete suas impertinências semânticas. A palavra ‘viés’ significa “obliquidade, linha, direção oblíqua” e ‘mania’ quer dizer “aferro a uma ideia fixa, teima, desejo imoderado”. Portanto, não são termos sinônimos e não deveriam ser usadas paralelamente como o fez o tão “atento” comentador.
g) “é uma tese completamente absurda” –
Considerar ‘absurda’ uma tese qualquer que seja acerca da qual se nunca fez pesquisa científica para confrontá-la ou sequer leu um artigo científico sobre a questão é no mínimo uma atitude irresponsável. Absurdo é usar um veículo de comunicação tão poderoso como o rádio e a audiência de tão prestigiada emissora para fazer ecoar suas mais obsoletas concepções sobre linguagem, pois defender qualquer preconceito é um atentado ao ser humano, ao seu direito de ser. No que concerne à língua, este tipo de preconceito é um dos mais sutis e danosos porque silenciosamente paralisa o indivíduo no processo de
Considerar ‘absurda’ uma tese qualquer que seja acerca da qual se nunca fez pesquisa científica para confrontá-la ou sequer leu um artigo científico sobre a questão é no mínimo uma atitude irresponsável. Absurdo é usar um veículo de comunicação tão poderoso como o rádio e a audiência de tão prestigiada emissora para fazer ecoar suas mais obsoletas concepções sobre linguagem, pois defender qualquer preconceito é um atentado ao ser humano, ao seu direito de ser. No que concerne à língua, este tipo de preconceito é um dos mais sutis e danosos porque silenciosamente paralisa o indivíduo no processo de
construção de sua autoestima, da imagem de si.
h) “realmente eu não consigo alcança essa ideia” – É esperado que o comentarista admita sua limitação em
alcançar essa ideia, pois sua análise não passa de um pitaco, de uma opinião intrometida em seara alheia, desprovida de quaisquer fundamentos científicos.
Há muitas pesquisas que provam as variedades linguísticas e que poderiam a abrir a mente deste senhor no que concerne ao funcionamento da língua. Trata-se de um fenômeno que acontece a todas as línguas vivas do mundo. Variação e mudança são movimentos naturais de fenômenos vivos. As línguas são assim, e por isso obedecem aos seus usuários que são seres criativos e dinâmicos. Fósseis imutáveis são apenas as concepções de alguns gramatiqueiros aos quais o comentarista político da Rede CBN, Merval Pereira, ajuda a congelar.
Penso que a direção de jornalismo da Rádio CBN deveria apenas pautar temas estritamente políticos, pois destes o Merval Pereira parece bem entendê-los.
Antonio Carlos Xavier – Professor titular em Linguística da UFPE.
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